O nome do barracão que ele construiu é Friedrich Wilhelm Nietzsche. Isso mesmo, o nome completo. Neste caso, não carece dizer que o meu personagem real é fã de carne e osso do filosofo alemão. João Ângelo, codinome que lhe concedo para este relato, mora a 120 quilômetros de Palmas, num sítio que se confunde com sua visão filosófica do mundo, a relação intrínseca do ser humano com a natureza.
Da última vez que o visitei, pediu-me que falássemos de Nietzsche, pois agora iniciara a leitura de Para além do bem e do mal – sem pedantice intelectual. Estudou só até o ensino médio. Por algum tempo quis ser ator de teatro, contudo as circunstâncias não foram cúmplices de sua pretensão artística. Lê aos poucos, sem pressa e sem necessidade de prestar contas a ninguém, principalmente agora que inicia o preparo da terra para o frágil reino das hortaliças.
Enquanto prepara o cigarro reclama que nunca acerta a grafia do nome de Nietzsche, mas aprendeu a pronunciá-lo. Digo-lhe que neste quesito ele não está só, e cito que Luis Fernando Veríssimo já disse que com a internet agora pode acertar o nome do autor de Assim Falou Zaratustra. Mas meu conhecido não tem internet, tem um rádio. Fica feliz quando pode ouvir Negro amor, aquela canção do Bob Dylan, versão do Caetano, na voz da Gal Costa.
João Ângelo é um sujeito silencioso, competente na tarefa de ouvir, penso que seja um místico do cerrado, afeito mais à linguagem dos pássaros. Suspeito que vive de segredo com as árvores. Sabe o nome de todas, sem titubear. Esta é a araçá, aquele é o vinhático, e segue com sua enciclopédia vegetal. Já ouviu falar do poeta Manoel de Barros, de quem conhece um pequeno verso: “esticador de horizontes.” Conheço esticador de arame, é dureza - declara, para depois completar - mas há dias, no roçado, que eu gostaria de esticar o pôr do sol.
Próximo ao barracão, um pequeno bosque. O aconchegante aglomerado de árvores recebe o nome do escritor José Saramago. Ainda não leu nenhum livro de Saramago, mas tem simpatia pelo ilustre filho da aldeia de Azinhaga. Em tom de celebração, João Ângelo comenta: Fiquei sabendo que o avô desse escritor era camponês, homem simples, e um dia saiu de árvore em árvore abraçando-se a cada uma delas.
Atualmente mora só. Tento puxar assunto sobre a solidão. João Ângelo me surpreende, outra vez, dizendo: duas vezes por mês vou à cidade e caio na balada, é bom pro corpo e pra mente. Aqui, trabalho, leio, papeio com a natureza, danço, e grito. É provável que muita gente me tenha como louco; entretanto, loucura e lucidez é apenas uma questão de ponto de vista.
O sol avizinha-se da noite. Ambicionei ter um esticador de horizontes. Meu interlocutor entrega-me um presente filosófico, e, com ar de fraterna ironia, afirma: esta é uma abóbora niilista produzida por um camponês que lê Nietzsche. Eu agradeci e pensei: Humano, demasiado humano!
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