quinta-feira, 9 de junho de 2011

Um camponês que lê Nietzsche






















O nome do barracão que ele construiu é Friedrich Wilhelm Nietzsche. Isso mesmo, o nome completo. Neste caso, não carece dizer que o meu personagem real é fã de carne e osso do filosofo alemão. João Ângelo, codinome que lhe concedo para este relato, mora a 120 quilômetros de Palmas, num sítio que se confunde com sua visão filosófica do mundo, a relação intrínseca do ser humano com a natureza.
Da última vez que o visitei, pediu-me que falássemos de Nietzsche, pois agora iniciara a leitura de Para além do bem e do mal – sem pedantice intelectual. Estudou só até o ensino médio. Por algum tempo quis ser ator de teatro, contudo as circunstâncias não foram cúmplices de sua pretensão artística. Lê aos poucos, sem pressa e sem necessidade de prestar contas a ninguém, principalmente agora que inicia o preparo da terra para o frágil reino das hortaliças.
Enquanto prepara o cigarro reclama que nunca acerta a grafia do nome de Nietzsche, mas aprendeu a pronunciá-lo. Digo-lhe que neste quesito ele não está só, e cito que Luis Fernando Veríssimo já disse que com a internet agora pode acertar o nome do autor de Assim Falou Zaratustra. Mas meu conhecido não tem internet, tem um rádio. Fica feliz quando pode ouvir Negro amor, aquela canção do Bob Dylan, versão do Caetano, na voz da Gal Costa.
João Ângelo é um sujeito silencioso, competente na tarefa de ouvir, penso que seja um místico do cerrado, afeito mais à linguagem dos pássaros. Suspeito que vive de segredo com as árvores. Sabe o nome de todas, sem titubear. Esta é a araçá, aquele é o vinhático, e segue com sua enciclopédia vegetal. Já ouviu falar do poeta Manoel de Barros, de quem conhece um pequeno verso: “esticador de horizontes.” Conheço esticador de arame, é dureza - declara, para depois completar - mas há dias, no roçado, que eu gostaria de esticar o pôr do sol.
Próximo ao barracão, um pequeno bosque. O aconchegante aglomerado de árvores recebe o nome do escritor José Saramago. Ainda não leu nenhum livro de Saramago, mas tem simpatia pelo ilustre filho da aldeia de Azinhaga. Em tom de celebração, João Ângelo comenta: Fiquei sabendo que o avô desse escritor era camponês, homem simples, e um dia saiu de árvore em árvore abraçando-se a cada uma delas.
Atualmente mora só. Tento puxar assunto sobre a solidão. João Ângelo me surpreende, outra vez, dizendo: duas vezes por mês vou à cidade e caio na balada, é bom pro corpo e pra mente. Aqui, trabalho, leio, papeio com a natureza, danço, e grito. É provável que muita gente me tenha como louco; entretanto, loucura e lucidez é apenas uma questão de ponto de vista.
O sol avizinha-se da noite. Ambicionei ter um esticador de horizontes. Meu interlocutor entrega-me um presente filosófico, e, com ar de fraterna ironia, afirma: esta é uma abóbora niilista produzida por um camponês que lê Nietzsche. Eu agradeci e pensei: Humano, demasiado humano!
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(Paulo Aires - Texto publicado originalmente no Jornal do Tocantins, coluna Crônicas & Causos, em 02/06/2011).

terça-feira, 17 de maio de 2011

Entre a lucidez e o espanto

Foto: Vladimir Alencastro






  

 Agora sei que estou calmo, até posso ouvir um grilo que afina seu canto vespertino. Por aqui muitas pessoas já passaram: umas festivas; outras assustadas, sossegando feridas de uma noite sem clemência. Estou calmo, eu dizia, e lá fora ecoam cantos carnavalescos. Voltei aqui para beber uma paz sem nome, pois aprendi que às vezes o retorno é necessário. Aqui estou, coração desnudo para os expedientes do amor. Nenhum fantasma ronda meu diário de secreta alegria. Amanhã, estarei mais sereno ainda. Essa lua nova no meu olhar é como se um anjo impossível plantasse harmonia nos meus olhos entendidos em insônia. Depois da tempestade, vejo-me competente para a paz. Sem alarde, vou confessar esse assunto àqueles que sempre me quiseram vizinho da alegria. 
(Paulo Aires Marinho)
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Texto escrito para acompanhar fotografias de Vladimir Alencastro, realizadas na Igreja Matriz de Nossa Senhora do Rosário, na cidade de Pirenópolis - Goiás, Carnaval de 2011, publicado originalmente no site (EN)CENA:
http://ulbra-to.br/encena/galeria/2011/05/17/Entre-a-lucidez-e-o-espanto

sexta-feira, 29 de abril de 2011

Parque Cesamar, Zélia Gattai e Jorge Amado


No Parque Cesamar, uma criança brincava lambuzada de areia. A mãe interrompeu a leitura de um livro e, num gesto de ternura e afago tomou o filho pela mão – boca de riso coruja – disse: “Menino da cara de areia, me dá um beijo!” Pronto, a instigação literária postou raízes no meu imaginário enquanto circulava o lago, reflexivo, quase um monge tibetano; nem o comportamento urbano das capivaras roubou-me aquela cena. Menino da cara de areia, menino da cara de areia... Sem motivo aparente lembrei-me do inesquecível romance de Jorge Amado, Capitães de Areia; e rememorei a visita que fiz à Zélia Gattai, na Casa do Rio Vermelho, Salvador.

Pelourinho fervilhando de turistas. O largo da praça, onde fica a Fundação Casa de Jorge Amado, sob os cuidados de Exu, respirava permanente estado de festa. Queria visitar Zélia, a escritora memorialista e companheira de Jorge. Comprei ali mesmo a trilogia Os subterrâneos da liberdade e Anarquistas, graças a Deus. A meninada do Olodum irrompeu de uma rua paralela executando uma percussão contagiante. Os gringos, desengonçados, mostram sem timidez que não têm muita ginga, molejo.

Arrisquei uma visita à Casa do Rio Vermelho, sem agendamento. Perguntei ao taxista se mesmo depois da morte de Jorge muita gente visitava Zélia, ao que ele respondeu: “Meu rei, isso aqui é uma romaria. Seu Jorge e dona Zélia são muito amados!” A casa, uma  edificação simples, austera. À simpática secretária eu disse: Sou do Tocantins, ficaria grato em receber o autógrafo da autora, e entreguei o livro. Minutos depois, voltou com a mesma afabilidade e ordenou que eu entrasse: “Dona Zélia vai recebê-lo!” 

Estava deitada numa longa poltrona reclinada, na área dos fundos. Um casal de pequenos cães, inertes, vigiava a dona da casa que se encontrava em tratamento de saúde. Sorridente, pediu à secretária que me levasse a conhecer o quintal. Ali pude ver sapos ornamentais e uma árvore frondosa sob a qual estão as cinzas do autor de Jubiabá, Suor, Tereza Batista Cansada de Guerra e tantos outros livros que muito dizem da vida, dos sonhos e das lutas do povo brasileiro.

Emocionado, recebi de presente o livro Um chapéu para viagem, obra que ela escreveu em homenagem ao companheiro de muitas aventuras e realizações. Saí daquela casa pensando na imensa legião de fãs e amigos que por ali já havia passado: desde pessoas anônimas à personalidades como o poeta Pablo Neruda, os artistas plásticos Carybé e Calasans Neto, o músico Dorival Caymmi, amigos de primeira hora. Depois de um abraço de gratidão, li a dedicatória na primeira página: “Para Paulo, que veio de tão longe, estes Anarquistas, graças a Deus, com carinho.”

Tempos depois, novembro de 2004, soube da importante notícia: a Universidade Federal do Tocantins conferia à Zélia Gattai o título de Doutora Honoris Causa. Creio ter sido uma homenagem do povo tocantinense àquela mulher que, assim como o seu companheiro, dedicou o melhor de si à cultura brasileira; alguém que não se deixou mascarar de falsos requintes e gestos estéreis por conta da fama e notoriedade pública.

Naquele dia, deixei o Parque Cesamar com essas fortes lembranças: aquela mãe que beijava o filho - menino da cara de areia - e que lia um livro em cuja contracapa pude vislumbrar apenas uma foto do escritor baiano; e de Zélia Gattai, como se todos eles me dissessem, com a necessária serenidade: a vida vale os sonhos que cultivamos!

(Crônica publicado no Jornal do Tocantins, Caderno Arte & Vida, p. 03 - 28/04/2011)

quarta-feira, 27 de abril de 2011

A sedução literária dos ratos



 Nunca duvidei da grandeza literária dos ratos, tampouco do potencial político-simbólico na vida social desses roedores por sina e imperativo existencial. Quando Albert Camus publicou o romance A Peste, o mundo vivia a ressaca escabrosa da II Guerra Mundial. A narrativa de A Peste é ambientada na cinzenta Oran, cidade da Argélia, onde a população consome seus dias em função do trabalho e do acúmulo de riquezas. Então, os ratos, misteriosamente, vão tomando a cidade. As pessoas se desesperam, em vão. Outro importante livro que apresenta o rato como causa da corrosiva insônia do protagonista Naziazeno - no limite do tormento e da angústia - é Os Ratos, de Dyonélio Machado.
A literatura bem elaborada, no decorrer da história, tem registrado com fino olhar, senso crítico, humor e certa dose de ironia, o comportamento político-cultural, ilusões e desilusões do ser humano nas mais diversas sociedades; às vezes, até se dá ao direito de soprar – na forma e na mensagem - um facho de luz em tempos de dor e obscurantismo (aqui estivemos, assim somos e vivemos ou teimamos viver). Vale citar, por exemplo, o que nos legou um Franz Kafka, José Saramago, Gabriel García Márquez, Graciliano Ramos, João Cabral de Melo Neto, dentre tantos e tantas.
Neste tempo de banalização da vida e da morte, em que quase nada mais causa estranhamento e indignação, certamente, e de igual forma, a beleza da literatura e das relações humanas está condenada a pouca audiência. Mas a metáfora dos ratos de Camus e Dyonélio Machado ganha perenidade na medida em que refletimos principalmente sobre as atuais questões políticas.
Por ventura ou por azar, como cantaria o músico Belchior, a imagem dos ratos assaltam nosso campo de visão sempre que nos engasgamos e ficamos constrangidos, ou felizes, com intermináveis escândalos  de corrupção nos governos federal, estaduais e municipais; o salário exorbitante dos parlamentares (muitos deles reeleitos sucessivas vezes com nosso voto de  sacrossanta miopia); desvios absurdos de verbas da saúde e da educação para o bolso de políticos  mascaradamente ‘inocentes’; obras públicas astronomicamente superfaturadas; a estúpida especulação imobiliária num país de geografia continental; o agronegócio voraz  e predador do meio ambiente, e por aí segue o elástico interminável de situações horripilantes onde a impunidade grassa como uma atroz peste bubônica a glorificar a indiferença humana.
Agora que releio o livro de Camus e penso nessas coisas todas, e sobretudo penso na relevância da literatura na cultura de um povo, e também na importância do rato de laboratório nos estudos da biologia molecular, me vejo a balbuciar versos da canção Ode aos ratos, de Chico Buarque: “Saqueador da metrópole/Tenaz roedor/De toda esperança/Estuporador da ilusão/Ó meu semelhante/Filho de Deus, meu irmão.” Eis a arrebatadora sedução literária dos ratos!






(Publicado no Jornal do Tocantins, 09/04/2011, p.04)

quinta-feira, 24 de março de 2011

INVENÇÃO DE PEDRA E SONHO











Estoquei meus sonhos para um amor impossível.
Desavisado pássaro nômade,
Não quis o estatuto de   vôos mascarados.
Não indago mais o destino na palma da própria mão.

O sonho manda aviso,
Senhor de tempo marcado,
Não guarda ocas promessas
Nos frutos que virão.

Por esses dias
O tempo é cego,
O tempo é pedra –
Talvez mineral propenso
Aos segredos do vento noturno.





 (Paulo Aires Marinho)

VÍCIO COTIDIANO
















Calejados pés
Sobre caminhos destroçados,
Poeira e sonho.

Essa dor, esse gole de saliva
Escura e amarga.
Esse abraço amigo e definitivo.
Essa estranha sede sem endereço...

Minha alma
Lambendo cacos de estrela
Persegue as entranhas da madrugada.

Meu coração incendiado,
Embornal de Esperança
(alimento imperecível),
Esse vício cotidiano.

(Paulo Aires Marinho – Do livro Perto do Fogo)

Por que escrevo - Bernardo Carvalho



"Eu escrevo porque não daria para não escrever. Não sei explicar. Quando eu não escrevo, fico agitado. Mas não é terapia. É fundamental, é a minha vida. É mais importante que qualquer outra coisa. O chato é quando vejo que é uma ilusão. Uma ilusão que eu criei para mim, mas é uma ilusão que dá sentido para a minha vida. Acredito nesse negócio. Tem um negócio meio religioso. Igreja de um homem só. Vou lá, rezo, e acredito naquele negócio. E funciona. Não acredito em Deus, não acredito em nada. Em alguma coisa, eu tinha de acreditar. E, aí, sobrou a literatura. É ótimo. Agora, não dá para ficar sem. Igual a uma pessoa que acredita em Deus e não consegue passar sem essa crença. Tem de acreditar que Deus existe. Eu acredito na literatura. É uma ilusão. Cada um arruma uma forma para viver. A literatura é a minha."
Bernardo Carvalho, no Paiol Literário, jornal Rascunho.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Carta a Raimundo Rasga-Mala













Recordo tuas peripécias
De homem errante, pássaro festivo,
Exilado de um estranho país distante.

Tua risada incontida.
Tua voz aguda, imprevisível.
Teu repente na ponta da língua.
Língua afiada, faísca de verdade
Que ninguém queria ouvir.

Teus pais, nunca os conhecemos.
Se irmãos tiveste, não soubemos.
Filhos teus não nasceram.

Por que tanta cana, Raimundo?
Por que tanto segredo, rapaz?

Eu, velho amigo, cumpro a tarefa
Que a poesia me pede:
Dou-te diploma de eternidade
Nestes versos outonais.

Amigos teus do Sindicato
Mandam-te um abraço agrário,
O Romão e o Luizinho do Olho d’Água.
Aqui publico, com letras de fogo,
Teu nome verdadeiro, de cruz e de papel:
Raimundo Pereira da Conceição.
Amigo, irmão, irmão!

(Paulo Aires Marinho – Do livro Perto do Fogo, p. 78)
Foto: P. A.



Jerônimo Malícia














Misterioso homem do povo.
Lavrador de janeiro a janeiro.
Artista sem sindicato,
Curandeiro sem consultório,
Inventor de garrafadas.

Lê destinos na palma da mão.
A todos dá poucos anos de vida.
É visionário, mas não dá garantia
Porque a consulta é de graça.

Com as revelações do mestre Malícia,
Sofreram achaque espiritual –
Drama de Fausto nas gavetas da alma -,
Zé Valdir, Celso Aires e João Bacaba.

Fez amizade com bichos do mato:
Cria o camaleão Rafael, o introspectivo;
E a manhosa e oculta cobra Beatriz
(que revela o pecado do adultério).
Com Jerônimo, melhor não tocar nesse assunto.

Repentista, político sem mandato,
Misterioso homem do povo.

(Paulo Aires Marinho – Do livro Perto do Fogo, p. 93)
Foto: P. A.