quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Guardar palavras











Extraídas do abismo da alma anoitecida,
Por muito tempo, em folhas maltratadas,
Guardei palavras, como as noites guardadas
No peito de Modigliani.

Penetro nas fendas do verbo,
Procuro as chaves do mistério,
O dicionário das ruas e seus lamaçais.

Quero decifrar a senha do fogo e a saliva da terra,
Escrever a vida e suas calçadas,
Como quem devora o verde assombroso
Dos olhos de Nahui Olin,
A Carmen Mondragón.

Carrego na língua
Rudimentos de vida e poesia,
E a ortografia de certas paixões.

Este é o ofício de guardar palavras:
Cultivar um sonho contra a morte cotidiana.

(Poema publicado no livro “Perto do Fogo – Trilogia do  Amor,
da Terra e da Esperança, p. 43 – Paulo Aires).

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Literatura e moralismo nos anéis de Saturno


             














Nada de novo debaixo do sol, expressão bíblica que se configura com meu tímido espanto frente ao comportamento de falso moralismo, travestido de elevado preceito ético, protagonizado por um pai contra a literatura brasileira de inconteste qualidade de estilo, fato ambientado numa escola do município paulista de Jundiaí.
                O episódio envolve o belíssimo conto "Obscenidades para uma dona de casa", do escritor Ignácio Loyola Brandão, inserido na coletânia “Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século”. Um pai de duas alunas gêmeas de 17 anos solicitou ao Ministério Público que determine o recolhimento do livro da rede pública estadual de ensino, alegando que o conto aludido é inapropriado para os alunos –  velada hipocrisia, doutrina para querubins nos anéis de Saturno! Esse pai seria um brilhante personagem envenenador de páginas no romance “O nome da rosa”, de Umberto Eco.
                Portugal foi o último país colonialista a abolir a escravidão e a inquisição. País que censurou a grandeza literária de José Saramago por conta de seu vigoroso romance “O Evangelho segundo Jesus Cristo”. Colonizados pelos portugueses, talvez aí resida a origem de nossa constrangedora herança punitiva ao sexo, ao avanço da ciência, da filosofia, da literatura; dessa patológica dualidade entre corpo e espírito.
                Nada mais fascista, repressor, que condenar ou proibir livros. A história nos mostra que essa atitude nunca foi plenamente exitosa. Jorge Amado teve milhares de exemplares queimados pelo regime militar; “Feliz ano novo”, de Rubem Fonseca, sofreu censura  dos milicos; em 2005, “Na Toca dos Leões”, de Fernando Morais, foi vítima de decisão judicial; só para citar três exemplos. Entretanto, essas obras sempre foram lidas clandestinamente e voltaram fortalecidas às mãos do público leitor.
                O Brasil ainda está longe de ser um país de leitores, lamentavelmente. Perde feio em número de livrarias para nossa vizinha Argentina. País do futebol é um título que mais remete ao comportamento de manada do que à inteligência dessa civilização cósmica, como dizia Darcy Ribeiro. Condenar a criação literária sob o falido código da pornogafia pela palavra é moralismo doentio, catecismo empoeirado de tempos sombrios. Na linha de frente do que se possa considerar de imoralidade deveriam sempre figurar a fome, o trabalho escravo, o latifúndio e o abandono das crianças e dos idosos.
                Tudo o que está naquele conto escrito com maestria, está, em menor ou maior grau, na vida cotidiana de todo ser humano. A autêntica literatura trata das relações humanas, em qualquer parte do mundo, e as relações humanas são complexas, desafiadoras, fascinantes. Na escola, como na família e em toda a sociedade, o diálogo é um antídoto imprescindível contra toda forma de opressão que segrega e anula a beleza das relações humanas.
(Artigo publicado no Jornal do Tocantins, 22.08.2010 – p. 04)

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

AS PEDRAS














Resignadas,
Guardam o suor dos relâmpagos
                                                e flores,
segredos de muros e calçadas.

Não há notícia de vontades.
Não choram,
                 as pedras.
Anoitecem a alma dos vaga-lumes
                                                errantes.

Não dormem.
Não sonham.
Indiferentes, vigiam as lágrimas
                                            do tempo.

Nuas e exatas,
Sepultam o perfume da dor,
                                      as pedras.

(Poema publicado no livro “Cantigas de Resistência” –
Paulo Aires Marinho)

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Para sempre
















Teus pés para sempre apaixonados.
Teus olhos para sempre condenados
Ao fogo da beleza.
Tua vida marcada com o beijo das estrelas.
Teu corpo traído pelo decreto da cruz e da espada.
Teu sangue derramado, profanado, pela lei do cifrão.

Senta-te ao pé da fogueira,
Meu irmão e minha irmã continentais,
Entre os Krakhôs e os Incas.
Quero tua mão na minha mão
Nesta dança sem igual,
Nesta ceia de milho ancestral,
Nesta estrada tão breve e tão longa...

Conheci teu lamento, teu aceno, tua chaga.
Provei tua língua, teus livros sagrados, rasgados.

No âmago do sertão, a pesada solidão de Buell Quain
E o fardo de sua morte intempestiva –
Desamparo grudado na cova do silêncio.
Neste continente,
O rosto indígena é curta-metragem,
Notícia caluniada,
Dolorida lembrança que não se arquiva,
Paixão para sempre grafada
Na pedra da memória.

(Poema publicado no livro “Perto do Fogo – Trilogia do Amor,
da Terra e da Esperança”, Paulo Aires Marinho)

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Prece outonal











Tu tens parentesco com os oráculos da primavera.
Palavra de livro incandescente,
Cabelos azuis desperdiçando luas.
Tua face é amante dos ventos gerais,
Só pode, eu creio e canto!

Criatura de paixão e pedra,
Concebida no oitavo dia da criação.
Íntima de deuses generosos,
Conduz a bula de certos milagres.

Olhos agrestes, sorriso largo num rosto camponês.
Homilia de mel e milho – certidão de luz e liberdade.
Ajuda-me a percorrer este tempo
De tempestade e assombro!

(Poema publicado no livro “Perto do Fogo – Trilogia do Amor,
da Terra e da Esperança”, Paulo Aires)

quinta-feira, 12 de agosto de 2010