quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

Quarto manuscrito

Teus olhos de vitrais e suor,
A implacável luz do teu corpo.
Teu sorriso de farol e liberdade.
Tua palavra de vinho e pão partido.

Teus ensinamentos de torre iluminada.
Teu livro de fadigas e sementes maduras.

Esta lembrança vai comigo
A vida inteira.

Por uma poética da comunhão

(...) Paulo Aires ousa conceber uma poética da comunhão e,
do meio do cerrado tocantinense, destina aos seus irmãos
de alma e luta uma braço alado, abrasador, continental.
Com esse gesto, ao mesmo tempo simples e raro,
o poeta assume o legado de uma responsabilidade histórica,
replantando as raízes da solidariedade que Ernesto Sabato,
Thiago de Mello, Pedro Tierra, Mario Benedetti, Pedro Casaldáliga
desejaram tantas vezes fixar em épocas hostis à poesia,
à fé, ao senso de liberdade.

Mariana Ianelli – Prefácio do livro “Perto do Fogo - Trilogia do Amor
da Terra e da Esperança.”

Perto do fogo


Fósforo insone à beira do abismo,
Aflição de fruta madura, vulcão delirante.
Vida, vida, mil vezes vida,
Brasa em madeira verde.

Rumor de trigo na língua insaciável.
Vida, vida, vício que não se cura.
Vida que se ganha e se perde.
Este barro, este sopro,
Este breve e belo sonho torto.

Sigo aprendendo do fogo
A lição dos olhos que dormem
E renascem por pura teimosia,
Contrariando a inveja das cinzas.

quarta-feira, 18 de março de 2009

A PALAVRA DESPIDA


Quero desnudar a palavra
E tecer meu canto
A favor da vida.

Palavra a ser escrita,
Proclamada,
Ouvida.
Desenhando a justiça
Na boda do mundo,
No coração humano,
Nas estradas da vida.

Palavra organizada.
Desorganizada.
Livre.
Em versos, crônicas,
Odes – gestos de rebeldia...

Quero a palavra
Lapidada em noites insones,
Com asas revoltas,
Sobrevoando nossas cabeças,
Incomodando o amargo silêncio
Tatuado na garganta
Dos partidários da morte.

(Paulo Aires – in Cantigas de Resistência)

terça-feira, 17 de março de 2009

Inveja do Chico Buarque



Tentei
tocar violão, os dedos pediram trégua. Três poemas musicados mitigaram meu abismo de músico derrotado. Contentei-me em conhecer e apreciar a discografia da canção popular brasileira. Já não tenho inveja do Chico Buarque de Hollanda. Trocando em miúdos, li Neruda (de Isla Negra às alturas de Macchu Picchu), ouvi Pixinguinha, fiz promessas em vão, derreti alianças e moro de aluguel.

Li, há algum tempo, uma crônica (o nome do autor caiu no esquecimento, ele há de me perdoar), que falava da inveja que os homens têm do Chico, ícone da cultura brasileira. Nunca me esqueci desse texto, porque, assim como o cronista, eu também não tenho inveja do autor de “Paratodos”, o discípulo e parceiro musical do maestro soberano Antônio Brasileiro, o ex-estudante de arquitetura que virou compositor e cantor de refinada inteligência, o atleta do Politheama e torcedor do Fluminense, o Julinho da Adelaide, o romancista vigoroso, o confidente da estilista-mártir Zuzu Angel, o ex-marido da atriz Marieta Severo, o sogro do Carlinhos Brown, o noivo da Mangueira, o grande artista brasileiro que provoca suspiros em sucessivas gerações de mulheres que curtem a MPB. Há uma lenda (foi ficcionada pela escritora Ana Miranda, no conto Jantar), que insinua Clarice Lispector a fim do jovem músico de olhos marítimos.

Voltando ao que dizia o cronista: no meio artístico, os homens vivem inventado fofocas para derrotar o Chico Buarque. Até o Caetano tem a sua pontinha de inveja do moço carioca. Recordo-me que o FHC, quando presidente, certamente com inveja da inconteste grandeza ética e artística do filho do historiador Sérgio Buarque de Hollanda, disparou que a obra do rapaz era ultrapassada. Chico jamais respondeu ao disparate do sociólogo das privatizações.

Outro dia, visitei o poeta Célio Pedreira. Entre café, literatura e sertão, ele brindou-me com várias canções num violão caseiro. Confesso ter sentido inveja da habilidade musical do meu amigo. Incrível, porque quanto ao Chico Buarque não nutro esse sentimento. Tive uma namorada que discordava do meu gosto literário, mas quando o assunto era o Chico os olhos dela brilhavam e mudavam de cor. Nunca discutimos por causa disso, entretanto, eu sabia que a grande paixão da vida dela era o Francisco Buarque.

Pensando bem, assim como aquele admirável cronista, de quem surrupiei a idéia deste texto-homenagem, repito: eu não tenho inveja do Chico Buarque. Na verdade, eu também queria mesmo era ser o Chico Buarque, com carteira de identidade e tudo, mulheres, música e mistério; e ele que fosse eu, problema dele!

Sobre a poesia de Paulo Aires


“A poesia de Paulo é “palabra em la tierra”, que fala à mente, ao coração, à comunidade. Porque é de chão e de corpo, de rua e de sonho, de esquina e de mundo.”
(Pedro Casaldáliga – in Prefácio de Cantigas de Resistência)


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“Somos de um lugar que ainda precisa ser contado. Onde ainda não se deu nome a todas as coisas. Por isso o poeta precisa ser os olhos que percebem e a mão que escreve. Esse “inventário” é indispensável para compor o mosaico da nossa fisionomia. Que as “Cantigas de Resistência” sejam, aos olhos do leitor, uma pedra na composição desse mosaico.” (Pedro Tierra)