terça-feira, 17 de março de 2009

Inveja do Chico Buarque



Tentei
tocar violão, os dedos pediram trégua. Três poemas musicados mitigaram meu abismo de músico derrotado. Contentei-me em conhecer e apreciar a discografia da canção popular brasileira. Já não tenho inveja do Chico Buarque de Hollanda. Trocando em miúdos, li Neruda (de Isla Negra às alturas de Macchu Picchu), ouvi Pixinguinha, fiz promessas em vão, derreti alianças e moro de aluguel.

Li, há algum tempo, uma crônica (o nome do autor caiu no esquecimento, ele há de me perdoar), que falava da inveja que os homens têm do Chico, ícone da cultura brasileira. Nunca me esqueci desse texto, porque, assim como o cronista, eu também não tenho inveja do autor de “Paratodos”, o discípulo e parceiro musical do maestro soberano Antônio Brasileiro, o ex-estudante de arquitetura que virou compositor e cantor de refinada inteligência, o atleta do Politheama e torcedor do Fluminense, o Julinho da Adelaide, o romancista vigoroso, o confidente da estilista-mártir Zuzu Angel, o ex-marido da atriz Marieta Severo, o sogro do Carlinhos Brown, o noivo da Mangueira, o grande artista brasileiro que provoca suspiros em sucessivas gerações de mulheres que curtem a MPB. Há uma lenda (foi ficcionada pela escritora Ana Miranda, no conto Jantar), que insinua Clarice Lispector a fim do jovem músico de olhos marítimos.

Voltando ao que dizia o cronista: no meio artístico, os homens vivem inventado fofocas para derrotar o Chico Buarque. Até o Caetano tem a sua pontinha de inveja do moço carioca. Recordo-me que o FHC, quando presidente, certamente com inveja da inconteste grandeza ética e artística do filho do historiador Sérgio Buarque de Hollanda, disparou que a obra do rapaz era ultrapassada. Chico jamais respondeu ao disparate do sociólogo das privatizações.

Outro dia, visitei o poeta Célio Pedreira. Entre café, literatura e sertão, ele brindou-me com várias canções num violão caseiro. Confesso ter sentido inveja da habilidade musical do meu amigo. Incrível, porque quanto ao Chico Buarque não nutro esse sentimento. Tive uma namorada que discordava do meu gosto literário, mas quando o assunto era o Chico os olhos dela brilhavam e mudavam de cor. Nunca discutimos por causa disso, entretanto, eu sabia que a grande paixão da vida dela era o Francisco Buarque.

Pensando bem, assim como aquele admirável cronista, de quem surrupiei a idéia deste texto-homenagem, repito: eu não tenho inveja do Chico Buarque. Na verdade, eu também queria mesmo era ser o Chico Buarque, com carteira de identidade e tudo, mulheres, música e mistério; e ele que fosse eu, problema dele!

2 comentários:

  1. Revista Caros Amigos – Dezembro/1997
    Ruy Fernando Barboza

    Inveja do Chico Buarque?

    Quando minha namorada fala do Chico Buarque, costumo me lembrar de duas pessoas: Ernest Hemingway e Eduardo Barreto. Hemingway diz que, se você quer que sua mulher tenha de você a imagem de um homem corajoso, nunca a leve para ver uma tourada. Depois que ela vê o desempenho do toureiro, passa a achar que aquilo é que é macho, o resto é conversa. E o artista gráfico Eduardo Barreto é um dos muitos homens da minha geração que, desde os primeiros anos da década de 60, vêm tentando achar um defeito de caráter, uma picaretagem, uma doença grave, seja lá o que for – enfim, alguma coisa ruim no Chico Buarque, para que sobre algum espaço para nós, na admiração de nossas mulheres. “Ninguém pode ser tão maravilhoso assim”, dizia Eduardo, “compor assim, escrever assim, ter aqueles olhos, estar casado com uma mulher como a Marieta Severo... Aí tem coisa.” De vez em quando, Eduardo nos puxava para um canto: “Parece que a coisa agora é séria. O Chico está com um tumor no cérebro.” Vã esperança. Mesmo agora, depois de anunciada a separação de Chico e Marieta, o casal, que tinha um casamento invejado, passou a ter uma separação invejadíssima...

    O Caetano é outro que, embora de forma disfarçada, está tentando achar defeito no Chico. Pode ver, no trecho do livro dele, no anúncio que a Companhia das Letras vem publicando em jornais e revistas. Caetano lembra que ele e Chico ficaram nacionalmente conhecidos e começaram a enriquecer ao competir no Esta Noite se Improvisa, da velha TV Record. No programa, a produção dava uma palavra, e ganhava pontos quem lembrasse primeiro uma música cuja letra contivesse aquela palavra. Caetano era um concorrente poderoso, mas Chico era melhor. Pois Caetano diz que Chico só ganhava dele porque, muitas vezes, compunha músicas na hora – o que era proibido pela produção, pois não era um concurso de repentistas, e sim de memória musical. Pura inveja, evidentemente – e perfeitamente compreensível, mesmo num compositor genial como Caetano. O conhecido incidente no Florentino, em que Chico deu uma valente cusparada em Millôr Fernandes, começou, para quem não se lembra, com a infeliz frase de Millôr, publicada nos jornais da época: “Não confio em Chico Buarque nem para tomar conta do meu cachorro”...

    A inveja do Caetano, como se vê, é disfarçada, ressentida, vem num aparente elogio à capacidade de improvisação de Chico. A de Millôr apareceu raivosa, direta. Despretensiosamente, quero dizer que acho que os entendo.

    Talvez se eu falar da minha inveja fique mais claro.

    Morro de inveja do Caetano. Lembro-me, por exemplo, de quando ouvi pela primeira vez o disco de Londres, com Maria Bethania e London, London. Ao lado da emoção cívica e da impotente dor política que o exílio de Gil e Caetano nos causavam, e da admiração pela explosão da nova etapa do talento do Caetano, morri de inveja dele. Já tive muita vontade de ser cantor e compositor, tenho minhas musiquinhas, adoro cantar. Meu sucesso já chegou a ultrapassar as fronteiras domésticas, e me recordo perfeitamente que duas pessoas – um vizinho e uma vizinha – me elogiaram. Mas estou longe de ser até mesmo, digamos, um Martinho da Vila. Caetano, então, nem pensar...

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  2. Tenho também uma inveja assumidíssima do Millôr. Da erudição, da criatividade, da genialidade do Millôr. Inveja que começou na minha infância, com o Pif-Paf, em O Cruzeiro – “Cada número é exemplar, cada exemplar é um número”. Eu lia, adorava, e quantas vezes, lembrando as frases do Millôr no meio das aulas, tinha de me conter, para não ter de explicar aos professores do que estava rindo – por exemplo: “Alguns ficam na cama porque estão doentes; outros, porque se sentem muito bem”. Adolescente, tinha a fantasia de escrever coisas brilhantes como as do Millôr. Tenho aqui minhas tiradas, tão bem sucedidas quanto as minhas músicas, em casa e nas vizinhanças. Mas já sei que nunca vou escrever nem sequer como o Carlos Heitor Cony – quanto mais o Millôr Fernandes...

    Muitas vezes, depois de ouvirmos o Caetano, falo da minha inveja. Minha namorada diz que cada um tem suas qualidades. Por exemplo, eu sou muito mais modesto que o Caetano, segundo ela. E a modéstia é uma qualidade importante. Quando falo da minha inveja do Millôr, ela diz que eu sou mais bonito do que ele. Não digo que não seja bom ouvir isso, mas sempre tenho uma sensação de estar sendo enganado.

    Mas nunca tive inveja do Chico. Quanto ao Chico, sou tomado por um sentimento muito diferente da inveja. Nunca pensei em compor como o Chico, nem em ser bonito como o Chico, nem escrever como o Chico.

    Na verdade, eu queria mesmo é ser o Chico. É isso aí. Em vez de o Chico nascer, eu teria nascido, no lugar dele, e eu seria ele, até com o nome dele, tudo direitinho. E, se ele quisesse nascer também, podia nascer no meu lugar, e ele seria eu, é claro. Problema dele.

    Quando falo disso para a minha namorada, ela me olha com um olhar pensativo. Acho que ela me entende, pois não diz nada, nada. Fica quietinha.

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