sexta-feira, 29 de abril de 2011

Parque Cesamar, Zélia Gattai e Jorge Amado


No Parque Cesamar, uma criança brincava lambuzada de areia. A mãe interrompeu a leitura de um livro e, num gesto de ternura e afago tomou o filho pela mão – boca de riso coruja – disse: “Menino da cara de areia, me dá um beijo!” Pronto, a instigação literária postou raízes no meu imaginário enquanto circulava o lago, reflexivo, quase um monge tibetano; nem o comportamento urbano das capivaras roubou-me aquela cena. Menino da cara de areia, menino da cara de areia... Sem motivo aparente lembrei-me do inesquecível romance de Jorge Amado, Capitães de Areia; e rememorei a visita que fiz à Zélia Gattai, na Casa do Rio Vermelho, Salvador.

Pelourinho fervilhando de turistas. O largo da praça, onde fica a Fundação Casa de Jorge Amado, sob os cuidados de Exu, respirava permanente estado de festa. Queria visitar Zélia, a escritora memorialista e companheira de Jorge. Comprei ali mesmo a trilogia Os subterrâneos da liberdade e Anarquistas, graças a Deus. A meninada do Olodum irrompeu de uma rua paralela executando uma percussão contagiante. Os gringos, desengonçados, mostram sem timidez que não têm muita ginga, molejo.

Arrisquei uma visita à Casa do Rio Vermelho, sem agendamento. Perguntei ao taxista se mesmo depois da morte de Jorge muita gente visitava Zélia, ao que ele respondeu: “Meu rei, isso aqui é uma romaria. Seu Jorge e dona Zélia são muito amados!” A casa, uma  edificação simples, austera. À simpática secretária eu disse: Sou do Tocantins, ficaria grato em receber o autógrafo da autora, e entreguei o livro. Minutos depois, voltou com a mesma afabilidade e ordenou que eu entrasse: “Dona Zélia vai recebê-lo!” 

Estava deitada numa longa poltrona reclinada, na área dos fundos. Um casal de pequenos cães, inertes, vigiava a dona da casa que se encontrava em tratamento de saúde. Sorridente, pediu à secretária que me levasse a conhecer o quintal. Ali pude ver sapos ornamentais e uma árvore frondosa sob a qual estão as cinzas do autor de Jubiabá, Suor, Tereza Batista Cansada de Guerra e tantos outros livros que muito dizem da vida, dos sonhos e das lutas do povo brasileiro.

Emocionado, recebi de presente o livro Um chapéu para viagem, obra que ela escreveu em homenagem ao companheiro de muitas aventuras e realizações. Saí daquela casa pensando na imensa legião de fãs e amigos que por ali já havia passado: desde pessoas anônimas à personalidades como o poeta Pablo Neruda, os artistas plásticos Carybé e Calasans Neto, o músico Dorival Caymmi, amigos de primeira hora. Depois de um abraço de gratidão, li a dedicatória na primeira página: “Para Paulo, que veio de tão longe, estes Anarquistas, graças a Deus, com carinho.”

Tempos depois, novembro de 2004, soube da importante notícia: a Universidade Federal do Tocantins conferia à Zélia Gattai o título de Doutora Honoris Causa. Creio ter sido uma homenagem do povo tocantinense àquela mulher que, assim como o seu companheiro, dedicou o melhor de si à cultura brasileira; alguém que não se deixou mascarar de falsos requintes e gestos estéreis por conta da fama e notoriedade pública.

Naquele dia, deixei o Parque Cesamar com essas fortes lembranças: aquela mãe que beijava o filho - menino da cara de areia - e que lia um livro em cuja contracapa pude vislumbrar apenas uma foto do escritor baiano; e de Zélia Gattai, como se todos eles me dissessem, com a necessária serenidade: a vida vale os sonhos que cultivamos!

(Crônica publicado no Jornal do Tocantins, Caderno Arte & Vida, p. 03 - 28/04/2011)

Um comentário:

  1. Bela crônica, Paulo, me fez lembrar de encontros, em lançamentos de livros mesmo, que tive com escritores que admiro, como Moacir Scliar, Marina Colasanti e Ignácio de Loyola Brandão.
    Sabe que já tive a oportunidade também de visitar as casas onde nasceram Érico Veríssimo (Cruz Alta-RS), José de Alencar (Fortaleza-CE) e Guimarães Rosa (Cordisburgo-MG)? Hoje funcionam como museus, e é fascinante lembrar que naquele espaço físico viveram pesaoas tão importantes para a literatura.
    Um abraço direto do cerrado!

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