quarta-feira, 27 de abril de 2011

A sedução literária dos ratos



 Nunca duvidei da grandeza literária dos ratos, tampouco do potencial político-simbólico na vida social desses roedores por sina e imperativo existencial. Quando Albert Camus publicou o romance A Peste, o mundo vivia a ressaca escabrosa da II Guerra Mundial. A narrativa de A Peste é ambientada na cinzenta Oran, cidade da Argélia, onde a população consome seus dias em função do trabalho e do acúmulo de riquezas. Então, os ratos, misteriosamente, vão tomando a cidade. As pessoas se desesperam, em vão. Outro importante livro que apresenta o rato como causa da corrosiva insônia do protagonista Naziazeno - no limite do tormento e da angústia - é Os Ratos, de Dyonélio Machado.
A literatura bem elaborada, no decorrer da história, tem registrado com fino olhar, senso crítico, humor e certa dose de ironia, o comportamento político-cultural, ilusões e desilusões do ser humano nas mais diversas sociedades; às vezes, até se dá ao direito de soprar – na forma e na mensagem - um facho de luz em tempos de dor e obscurantismo (aqui estivemos, assim somos e vivemos ou teimamos viver). Vale citar, por exemplo, o que nos legou um Franz Kafka, José Saramago, Gabriel García Márquez, Graciliano Ramos, João Cabral de Melo Neto, dentre tantos e tantas.
Neste tempo de banalização da vida e da morte, em que quase nada mais causa estranhamento e indignação, certamente, e de igual forma, a beleza da literatura e das relações humanas está condenada a pouca audiência. Mas a metáfora dos ratos de Camus e Dyonélio Machado ganha perenidade na medida em que refletimos principalmente sobre as atuais questões políticas.
Por ventura ou por azar, como cantaria o músico Belchior, a imagem dos ratos assaltam nosso campo de visão sempre que nos engasgamos e ficamos constrangidos, ou felizes, com intermináveis escândalos  de corrupção nos governos federal, estaduais e municipais; o salário exorbitante dos parlamentares (muitos deles reeleitos sucessivas vezes com nosso voto de  sacrossanta miopia); desvios absurdos de verbas da saúde e da educação para o bolso de políticos  mascaradamente ‘inocentes’; obras públicas astronomicamente superfaturadas; a estúpida especulação imobiliária num país de geografia continental; o agronegócio voraz  e predador do meio ambiente, e por aí segue o elástico interminável de situações horripilantes onde a impunidade grassa como uma atroz peste bubônica a glorificar a indiferença humana.
Agora que releio o livro de Camus e penso nessas coisas todas, e sobretudo penso na relevância da literatura na cultura de um povo, e também na importância do rato de laboratório nos estudos da biologia molecular, me vejo a balbuciar versos da canção Ode aos ratos, de Chico Buarque: “Saqueador da metrópole/Tenaz roedor/De toda esperança/Estuporador da ilusão/Ó meu semelhante/Filho de Deus, meu irmão.” Eis a arrebatadora sedução literária dos ratos!






(Publicado no Jornal do Tocantins, 09/04/2011, p.04)

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